27/9/2011 18:56, Por Elaine Tavares - de Florianópolis
O dólar entra de enxurrada
no Brasil porque o governo permite
No Brasil é assim: tudo
pode ser adiado, menos o pagamento das dívidas externa e interna. E isso não é
conversa de “esquerdista”. É coisa firmada na lei. Quem explica é Maria Lucia
Fatorelli, da Auditoria Cidadã da Dívida. Segundo os estudos
feitos pelo movimento que luta por uma auditoria, levantados desde as
informações oficiais, só no ano de 2010 o orçamento nacional foi consumido em
44,93% (635 bilhões de reais) para pagamento de juros das dívidas. Isso
significa que do bolo todo que o governo tem para gastar quase a metade já
nasce morto. Da outra metade que resta para i nvestimentos, o governo gasta
apenas 2,89% com educação e 3,91 com saúde. Por conta disso, mais de 60% dos
brasileiros não tem água tratada nem saneamento. Isso na sétima economia do mundo.
Diante desses números,
Fatorelli mostra como e por que a dívida acaba consumindo o
dinheiro que deveria servir para dar uma vida melhor à população. Segundo ela,
a Constituição, no artigo 166, estabelece que um deputado só pode pedir aumento
no orçamento se indicar de onde virão os recursos. Mas se o aumento do
orçamento incidir sobre o pagamento do serviço da dívida isso não é necessário.
“Isso configura claramente um privilégio e foi aprovado. Está lá, na
Constituição”. Da mesma forma, a Lei de Diretrizes Orçamentárias define que o
orçamento deve ser compatível com o supe rávit, assim como a famigerada Lei de
Responsabilidade Fiscal obriga os governantes a cortar gastos no social, mas
não os dispensa do pagamento da dívida. Ou seja, a dívida sempre em primeiro
lugar, pois, se o governante não pagar, vai preso. “Mas ninguém vai preso se as
pessoas morrem nas portas dos hospitais, se as crianças não têm escola”.
Fatorelli explica que o
privilégio para o pagamento da dívida segue no desenho das metas da inflação,
diretriz de política monetária proposta pelo Fundo Monetário Nacional que é
seguida a risca pelo governo brasileiro. Isso se expressou, por exemplo, na
criação da taxa Selic, a qual boa parte da dívida esteve e está atrelada. Essa
taxa sempre é elevada, cada vez que há um suposto perigo para os investidores.
Isso significa que quem investe nos papéis da dívida nunca vai perder.
Conforme Maria Lúcia o
governo trabalha com inverdades no que diz respeito à política monetária. Um
exemplo é justamente esse de tornar necessário o aumento da taxa Selic para
conter a inflação. “Isso não é verdade. Aumentar a taxa Selic não controla a
inflação nos preços existentes, porque eles decorrem da privatização. A luz
privatizada, a água privatizada, a saúde, etc. O aumento dessa taxa só serve
aos que têm papéis da dívida”. Outra conversa furada é a de que o excesso de
moeda provoque inflação. “A montanha de dólares que entra no país só acontece
porque o próprio gover no isenta as empresas multinacionais de imposto. Não é
decorrente da circulação de mercadorias reais. É fruto do movimento virtual de
papéis”.
A entrada de dinheiro se
dá da seguinte forma. Nas operações de mercado aberto (bolsa) que hoje superam
meio trilhão de reais, o Banco Central entrega títulos da dívida para os bancos
e fica com os dólares. Nessas operações, o Banco Central – que em tese é o
Estado brasileiro – só consegue amealhar prejuízos. Em 2009 foram 147 bilhões
de prejuízos, em 2010, 50 bilhões e neste primeiro semestre de 2011 já foram 44
milhões. Por conta disso, Fatorelli insiste em dizer que os gestores do Estado
são responsáveis sim por essa política que arrocha cada dia mais a vida do
povo. Os bancos lucram e o povo é quem paga a conta.
Outra coisa que muito
pouca gente sabe - porque a mídia não divulga – é que todo o lucro das empresas
estatais é direcionado, por lei, para pagamento da dívida. O mesmo acontece com
os recursos que os estados da federação pagam ao governo central. Toda e
qualquer privatização que acontece carrega o valor da venda para pagamento da
dívida, assim como os recursos que não são utilizados no orçamento também
passam para o bolo do pagamento da dívida.
Maria Lúcia Fatorelli
afirma que essa é uma estratégia de manutenção de poder e acumulação que não
mudou sequer um centímetro com o governo de Lula ou Dilma. Os papéis da dívida
rendendo 12% ao mês são o melhor negócio que alguém pode ter. Tanto que em 2010
houve um acréscimo de mais 12 bilionários no Brasil e desse número, oito são
banqueiros. A lógica do pagamento da dívida garante risco zero aos
investidores, que são os mesmos que financiam as campanhas eleitorais e
patrocinam a mídia. Assim, tudo está ligado.
No meio dessa farra de
dinheiro público indo para bolsos privados, há uma ilusória distribuição da
riqueza. O governo acena com pequenos ganhos aos pobres, como é o caso da bolsa
família. Vejam que esse programa consome apenas 12 bilhões ao ano, enquanto a
dívida leva 635 bilhões. O governo também coloca como um grande avanço o acesso
das classes C e D a produtos baratos e o acesso a crédito e financiamento. Mas
na verdade, o que promove é o progressivo endividamento dessas pessoas. Por
outro lado, o Brasil tem um modelo tributário que é um dos mais injustos e
regressivos. “Quem ganha até doi s salários mínimos tem uma carga tributária
bem maior do que os demais trabalhadores. E os ricos, no geral, são isentos de
imposto. Já os empresários são frequentemente presenteados com deduções
generosas, inclusive sobre despesas fictícias, que nunca foram feitas, enquanto
os trabalhadores não podem deduzir do imposto despesas reais como aluguel,
remédios, óculos”.
A ilusão de que as contas
estão boas também se dá na espalhafatosa decisão de pagar adiantado ao FMI, que
trouxe dividendos políticos a Lula, mas acarretou em mais rombos aos cofres
públicos, tirando dos gastos sociais para colocar no bolso dos banqueiros. Foi
um resgate antecipado de títulos da dívida, feito com ágio de até 70%, para que
não houvesse qualquer perda aos investidores.
Agora em 2011 o governo de
Dilma Roussef iniciou anunciando o corte de 50 bilhões do orçamento, como um
“ajuste necessário”. Faltou dizer, necessário para quem? Para os especuladores.
Há que pagar a dívida. O Brasil consome um bilhão de reais por dia no pagamento
da dívida. Fatorelli procurar dar uma visão concreta do que seria um bilhão.
“Imaginem um apartamento, desses bem finos, que custa um milhão de reais. Um
bilhão equivaleria a cem edifícios de 10 andares, sendo um apartamento por
andar. É isso que sai do nosso país todos os dias”. Não é sem razão que
enquanto os trabalhadores s ão massacrados e não recebem aumento salarial, os
bancos tenham auferido um lucro de 70 bilhões de reais no ano passado. É a
expressão concreta da regra do mundo capitalista: para que um seja rico, alguém
tem de ser escravo.
Na verdade o processo da
dívida externa e também da dívida interna deveria sofrer uma auditoria e é
nessa luta que um grupo de pessoas anda já há algum tempo. Maria Lúcia
Fatorelli foi membro da comissão que auditou as dívidas do Equador, quando o
presidente Rafael Correa decidiu realmente saber como funcionava o rolo compressor
e ilegal da dívida daquele país. Segundo ela, no Equador, comprovou-se que mais
de 70% da dívida era ilegal, fruto de anos e anos de acordos espúrios e
irresponsáveis, muito parecidos com os que foram feito no Brasil. Correa
decidiu não pagar e 95% dos seus credores aceit aram a proposta sem alarde,
pois sabiam que se fossem discutir na justiça internacional correriam o risco
de ter de devolver muitos bilhões.
Hoje, no Brasil, uma
auditoria provaria muitas ilegalidades e até crimes de lesa pátria. Como
explicar, por exemplo, que se pague 12% ao mês aos investidores enquanto o
Banco Central brasileiro aplica suas reservas em bancos estrangeiros, que pagam
juros pífios? Como aceitar que o Banco Central acumule prejuízos enquanto encha
as burras dos investidores dos papéis podres? Por isso que a tão falada crise
não pode ser vista como uma mera crise financeira. Ela é social e ambiental,
pois coloca o salvamento dos bancos acima até da vida do planeta.
Como funciona o esquema
dos papéis podres
Há um mito de que no mundo
capitalista quem manda no movimento das coisas é o mercado. Ele define tudo,
preços, valor, tudo baseado na oferta e procura. Assim, em nome desse mito
criou-se a concepção de desregulamentação do mercado. Ou seja, o estado não
pode interferir nesse movimento. Assim, o mercado, que é bem espertinho, sem um
equivalente concreto de riqueza decidiu criar os famosos papéis podres, ou
ativos tóxicos, ou derivativos. E o que é isso? Bom, para entender há que se
fazer um bom exercício de abstração. Imagine que a pessoa compra uma casa e ela
vale um milhão. Aí a pessoa defin e que daqui a um ano ela estará valendo dois
milhões, então vai ao mercado de ações e vende dois milhões em papéis. Desses
dois milhões, apenas um tem valor real, está ali, consolidado em uma casa real.
O outro milhão é fictício. Ele só existe no desejo. Imagine que venha um
furacão e danifique a casa. Lá se vai aquele milhão em papel podre, e quem
comprou esses papéis perde tudo que investiu. Foi mais ou menos isso que
aconteceu na crise imobiliária estadunidense.
Agora imagine que os
bancos fazem isso todos os dias. Eles jogam ações no mercado e não precisam
provar que essas ações têm uma correspondência real. Os derivativos são nada
mais nada menos do que apostas. O mercado sabe que é uma aposta, e para não
perder ele estabelece um seguro. Assim, se acontecer dos derivativos virarem
pó, eles não perdem nada. E quem é que paga para os bancos continuarem
quebrando a vida real dos que investem nos papéis podres? Nós. Porque quando os
bancos entram em risco de quebra, como aconteceu lá nos Estados Unidos, o
Estado vai e socorre. Para se ter uma idéia, na c rise, o banco central
estadunidense chegou a repassar 16 trilhões de dólares para salvar os bancos da
bancarrota. O que mostra que é uma falácia esse negócio de “mercado livre”. O
mercado só é livre quando há lucros, quando há prejuízos quem paga a conta é
povo.
Então, quando aparece na
televisão a crise na Grécia, os protestos na Espanha, na Itália, Irlanda,
França e mesmo no Brasil, já se pode saber que o que está acontecendo é
exatamente isso. Os países estão se endividando para salvar investidores e
pagar as dívidas que contraem nessa roda viva de papel podre. Assim, define
Fatorelli, a crise no setor financeiro dos países é falsamente transformada em
crise da dívida. E os países então colocam sob os ombros do povo o pagamento de
suas “apostas” mal feitas ou ilegais.
No Brasil a dívida externa
chega a 350 bilhões e a dívida interna aos 2,5 trilhões. A dívida bruta consome
70% do PIB e o governo paga os maiores juros do mundo. É uma festa interminável
para os investidores mundiais, sem risco algum. O governo de FHC consumiu, só
em juros, dois trilhões de reais, o governo Lula, 4,7 trilhões. Tudo o que se
diz na televisão sobre os problemas que o estado tem com o orçamento é mentira.
Há dinheiro suficiente, mas ele é usado para enriquecer, sem riscos, os
investidores. Não bastasse isso, ao longo dos anos, as taxas de juros, que
garantem os maiores lucros do mu ndo, são definidas por “especialistas”. Desse
grupo que orienta os juros 51% são representantes dos bancos e 35% representam
o sub-grupo de gestão de ativos. Ou seja, eles atuam em interesse próprio. Só
isso já bastaria para se dar início a uma séria investigação sobre o tema da
dívida. Porque da forma como tudo acontece, assoma claramente a intenção do
prejuízo à nação. Vem daí a proposta de uma auditoria, aos moldes da que fez o
Equador. Mas, para isso precisaria haver uma decisão política. Por que será que
ela não acontece? É hora de a gente pensar…
Elaine Tavares é jornalista, editora do boletim do IELA-UFSC.
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