segunda-feira, 13 de junho de 2011

A SIMPLICIDADE DO MESTRE - Espedito Seleiro

Estão copiando a arte de Espedito Seleiro. Sinal de que seu nome agrega valor e conceito ao couro cortado das sandálias coloridas, bolsas para executivos, chapéus, botas de artistas e top models, gibões e tralhas do vaqueiro conterrâneo...
13.06.2011| 01:30
(FOTO IGOR DE MELO)

Seu Espedito Seleiro não se empabula do sucesso que chegou à sua porta na acanhada Nova Olinda, no Cariri cearense. De uma hora pra outra os apetrechos de couro expostos na oficina ganharam o Brasil e o mundo nos pés e no manequim de famosos. Apreciar o assédio? Aprecia. Tanto que não há um cantinho 


para um novo retrato nas paredes sertanejas da fama. Ele e Guel Arraes, ele e Regina Casé, ele e Gonzagão... Ele e centenas que se fizeram clientes assíduos de ligar ou passar por lá para levar e encomendar desejos que tragam sua marca.

A amizade com cineastas, atrizes, doutores e gente da moda agregou novo valor e conceito às sandálias, às bolsas, aos porta-moedas e às botas, mas não lhe tiraram os pés nem a cabeça da realidade onde se criou. Leitor de seu tempo, Espedito sabe demandar para um grupo que trabalha a seu lado – esposa, filhos e aprendizes – qual cavalo está passando à sua frente e o que realizar para satisfazê-lo.

E ele diz que nunca para, pois não há tempo ruim. Quando é época de vender sela, faz sela enfeitada para patrão e tralha acessível pra vaqueiro simples. Na invernada, quem lida com o gado compra gibão. Nos setembros e outubros das vaquejadas, o couro é sinônimo de fartura na venda de seu Espedito. E na safra boa, colheita abundante, não há vencimento para os pedidos de cangalhas, cordas e outras tecnologias milenares e brejeiras.

Simples ele é. Empreendedor também. Por ele teria uma linha de produção mais robusta, além do que lhe pedem. Para não ter de rejeitar pedidos de fora com medo de não honrar compromissos e perder a palavra. Enquanto isso, vez em quando, lhe chega aos ouvidos que estão copiando suas peças. Pirateando a fama do mestre. Leia a seguir, a boa prosa que Espedito Seleiro teve com os repórteres do O POVO, na sala cercada de couro.

O POVO - O senhor ainda está vendendo para as grifes de moda (Cavalera e Cantão)?
Espedito Seleiro - Nesses dias não vendi mais, não. Por enquanto tô trabalhando com uma loja da Espanha.

OP - Qual é a loja?
Espedito - Não sei o nome nem o endereço. Quem sabe é meu menino.

OP - Quanto tempo o senhor trabalhou para as outras marcas?
Espedito - Desde... 2006, parece, que faço peça pra lá (Cavalera). Depois fiz pra Cantão.

OP - E as peças foram para a São Paulo Fashion Week?
Espedito - As peça que eu fiz foram direto pra São Paulo Fashion Week. Pro desfile.

OP - E o senhor foi assistir lá?
Espedito - Fui. Parece que foi em 2006.

OP - O que o senhor achou daquele mundo lá?
Espedito - Achei legal. Nunca tinha assistido e achei bonito e achei bom. Fui convidado, me receberam bem, as minhas peça foram aprovadas. Gostei demais. Passei quatro dias lá.

OP - Vendeu bastante?
Espedito - Pra eles, da Cavalera, vendi bem. Todas as peças.

OP - Foi lá que o senhor teve noção que também era uma grife internacional? Foi a primeira vez que participou de um desfile?
Espedito - Pra Cavalera foi a primeira vez. Mas fiquei na minha, porque fiz as peças todas e não sabia pra que era, né. Vieram aqui e perguntaram se eu tinha condição de entregar essas peça. Como eu tinha uma parte de peça que já estava pronta, aí disse que ia fazer em 40 dias. Eu fiz. Não sabia que era prum desfile famoso daquele. Depois que vi a festa foi que tive entendimento. Eu fui com a minha esposa e o meu filho. Eu gostei deles porque eles anunciaram, botaram em retratista, em DVD. Aí depois pra cá ampliou mais meu trabalho, aumentou mais.

OP - Dos famosos, quem compra ao senhor?
Espedito - O que gosto de falar é toda pessoa que compra são famosa. Mas vendo pra Dominguinhos, Alceu Valença, um monte de artista...

OP - Seu primeiro famoso foi Luiz Gonzaga?
Espedito - Foi. A primeira peça que eu fiz pra gente famosa foi de Luiz Gonzaga.

OP - Como o senhor o conheceu?
Espedito - Porque ele veio pra inaugurar um salão (de festas) que tem bem aqui, de Demar, o Recanto Clube. Ele que veio inaugurar. Aí Demar levou ele na minha oficina, que não era aqui. Era lá perto da igreja. E de lá pra cá fiquei conhecido.

OP - O senhor lembra do ano?
Espedito - Lembro não. Mas sei que ele já não estava assim muito sadio, que na festa ele já tocou sentadinho. E ele não gostava de tocar sentado. E de lá pra cá a gente ficou se encontrando.

OP - Fez muitas peças pra ele?
Espedito - Não fiz muitas, não. Fiz umas bolsa pra ele, sandália e chapéu. Fiz uma sandália branquinha que ele gostava de usar. Gibão, não.

OP - Hoje o senhor ganha mais vendendo para os artistas?
Espedito - A gente ganha mais com esses... é quem gosta mais de comprar. Não sei se é por causa dessas cores, do couro, não sei se é porque a gente faz coisa meio diferente, mas é pra desfile, é pra novela, pra alguns artista. É assim...

OP - O povo daqui compra?
Espedito - Compra, porque nasci e me criei na região. Conheço o pessoal todo. Tem muitos ano que trabalho. Nunca paro. Quando é na época de eu vender sela, eu sei e faço sela. Nessa época da chuva, o povo gosta de comprar gibão, pra tirar o gado de uma manga pra outra manga, outras terra. Aí precisa de roupa de couro. Na época da vaquejada, setembro e outubro, aí sou é feliz com as vaquejada, com os equipamentos de vaquejada. Na época de safra compra cangalha, compra corda, essas coisa assim pros homem da roça. E se vier o cabra comprar qualquer coisa assim pra desfile, qualquer coisa mistura uma com outra. Até hoje tem coisa que eu fiz que não sabia, depois que me disseram. Porque faz muitos anos que eu trabalho. Comecei pequeninho mais meu pai, tinha oito pra nove ano. E até hoje tô trabalhando na mesma profissão. Então é por isso que o povo diz. Disseram: “É não, é porque você conseguiu levar as coisa nossa do sertão pra capital”. E o povo vem da capital e compra mesmo.

OP - O senhor se considera artista?
Espedito - Não, eu me considero um homem trabalhador, mas artista, não. Só isso. O pessoal diz que a gente é artista, mas não sei se sou. Mas não me considero que nem uma pessoa famooosa. Dou graças a Deus que o pessoal vem de fora e comprar minhas peça.

OP - O senhor começou a trabalhar com couro em que ano?
Espedito - Comecei, era menino, mais meu pai. Quando foi em 1960, que eu me casei, eu já me saí da casa de meu pai e vim morar em Nova Olinda e o meu pai ficou morando no sítio, lá perto de Assaré. E eu fazia aquelas coisa que meu pai fazia. Era sela, chapéu de vaqueiro, sapato de vaqueiro, tinha muito vaqueiro na época. Tinha cigano, tropeiro. Tudo isso precisava de arreio e de couro. Isso de 1960, 1961... Aí depois o jeito que teve foi eu mudar o estilo, porque não estava mais vendendo sela nem gibão. Estava vendendo bem pouquim. Minha família tava crescendo. Em 1971 meu pai faleceu, deixou oito filhos, sou o filho mais velho de todos. Juntei os meus irmão novim e tive que dar assistência a esse pessoal. Por isso que me obriguei a trabalhar mais e fazer alguma coisa que chamasse atenção do pessoal. Deus me ajudou e o pessoal me ajudaram. E hoje tô me aperreando é pra fazer entrega. São muitas encomenda.

OP - Quantas pessoas trabalham em sua oficina?
Espedito - Nós nos juntamo numa associação. Temos vinte e poucas pessoas. Aqui é só família, filho, nora, tem uns menino que trabalha aí. Como é uma associação, a gente trabalha a hora que quer, sai a hora que quer. Ninguém é obrigado. Ganha por produção. A associação vende o produto, nós ganha aqui. Pra você fazer uma bolsa dessas (mostra um de seus trabalhos) bem trabalhada, tem que passar pelo menos um ano e tanto, até aprender.

OP - O senhor aprendeu com seu pai?
Espedito - Aprendi. E meu pai aprendeu com o pai dele e o pai do meu pai aprendeu com meu bisavô. Somos de uma raça de gente que é seleiro e vaqueiro. Porque nós fazia a sela e corria atrás do couro.

OP - Seu avô é de Nova Olinda?
Espedito - Meu avô nasceu lá perto de Nova Russas. É de um povoadozinho que chama Nova Arroba, pertinho de Sucesso. Tem Nova Arroba, tem Sucesso e tem Nova Roma. É um lugarzinho bem pequenininho. A família nossa todinha é de lá, do meu pai e da minha mãe. Meu avô, não conheci. Essa máquina aqui (de costura, que fica na entrada do ateliê) era dele. Fazia gibão, chapéu, arreio... Ainda hoje não sei de onde essa máquina veio.

OP - O senhor corria atrás de boi?
Espedito - Não, mas meu pai era vaqueiro e seleiro. Ele fazia sela pra ele e pro pessoal amigo dele da região. Quem tinha um boi pra pegar na mata, mandava seu Raimundo fazer uma sela. Mandavam meu pai fazer. Aí me casei e aprendi fazer sela com ele e graças a Deus a gente ganhou uma fama. E ainda hoje faço sela. Só que vendo hoje é mais bolsa e sandália. Também não gostava de trabalhar pras mulher porque me aperreio demais com os modelo (risos). Todo mês queriam que eu fizesse dois, três modelos. Cada roupa, um modelo. Em 1962 eu fazia bota pros vaqueiro, e ainda hoje faço e me compram. Mas quem compra não é só vaqueiro. É o padre, é doutor, escritor esse pessoal mais...né? Intelectuais. O pessoal acha bom porque é um estilo diferente.

OP - E o que o senhor mais gosta de fazer?
Espedito - Do jeito que gosto de trabalhar, é mais sela (bate a mão numa que está na entrada de seu ateliê). Porque quando pego um courão assim, bem grande, pra mim a sela já tá é pronta. Já sei o que vou fazer.

OP - E de onde o senhor tirou a ideia de desenhar a sela colorida?
Espedito - Quando meu pai era novo, na época ele fazia sela pra cigano. O cigano gostava do animal bem arreiado, bem bonito. Uns arreio diferente. Ele fazia decorada, bem desenhada. E eu ainda hoje faço. Naquela época não existia carro. A gente ia acompanhar um noivado, cada um subia num cavalo bonito e uns arreio mais bonito que o outro. É por isso que ele puxava na ideia pra fazer um arreio mais bonito que o outro. Só quem podia ter uma sela dessas naquela época era o chefe dos ciganos, ou o patrão dos vaqueiros. Tinha que vender quatro, cinco vaca pra comprar uma sela. Por isso foi que nós caprichemo nas sela que foi pra pegar mais dinheiro. Uma sela dessas eu vendo por mil e duzentos reais (mostra uma sela sem detalhes coloridos). Eu vendo mais ela do que essa (com couro colorido). Enquanto a gente faz uma selinha dessas (colorida), eu faço duas dessa (monocromática). O vaqueiro compra mais essa simples. Agora, o dono do gado procura mais essa (colorida), mais pra passear.

OP - E o chapéu?
Espedito - O chapéu também tem sua diferença. Tem o mais trabalhado, mais colorido, e tem o simples mesmo, que é pra correr na mata. Esse mais comum, usam por aí. O outro vale pro forró e pra passear. O sujeito chega em casa, bota lá no prego e pega aquele da roupa e sai. É isso aí que é a vida do sertanejo.

OP - O senhor sabia montar e derrubar boi no meio do mato?
Espedito - Sabia montar. A primeira vez que eu fui derrubar boi, caí. Quando puxei o boi pra derrubar, caí do cavalo. Aí disse “Vou mais não. Vou fazer agora os arreio”. Quem quiser ser vaqueiro, que vá ser (risos). Depois dessa queda, desisti. Mas meu pai era vaqueiro. Montava em burro brabo, laçava boi. Era seleiro e vaqueiro. É por isso que fui seleiro e ainda hoje tô aqui. E meus filhos também parece que gostam.

OP - Eles vão manter a tradição e tocar a oficina do senhor?
Espedito - Eu acho que sim. Porque eu já completei 40 anos (de trabalho), nunca saí de perto deles. Todos os dias tavam mais eu. Vão seguir o legado. Porque eu ainda sofri pra aprender. Mas eles, quando eu desaparecer, se quiser manter...

OP - Quantos filhos trabalham com o senhor?
Espedito - São duas mulher e três homem. Só a mais velha que não tá aqui. Tá morando em São Paulo. Mas é doida pra voltar. Uma coisa que queria muito era manter uma oficina aqui. Pra ir escapando uns e continuando outros. Não sei se vou conseguir. E antes de morrer deixo uma oficina aqui. Não quero quebrar a tradição de sela. Como meu nome já tá conhecido, queria manter isso.

OP - Sua esposa também trabalha com couro?
Espedito - Trabalha. Quando eu comecei, era só eu e ela. Era nós dois e os menino. Quando eu me aperreava na costura de uma chinela dessas, ela me ajudava. É a Francisca (Brito de Carvalho).

OP - Como é a escolha da combinação de cores a serem usadas? Quem desenha as peças?
Espedito - Agora você puxou um assunto, que o difícil não é fazer a sela. O difícil é fazer o modelo. Depois você fazer o molde, mas também o modelo para o molde, um para o outro, pra botar no papel bem finim. Desenha e monta toda, encosta numa madeira e vai puxar pelas cores. O difícil é combinar uma cor com a outra. Tem muitos por aí que sabem fazer uma sela, mas igual aqui, não. É porque toda peça gosto de combinar uma cor com o couro. No capricho.

OP - Quando o senhor vê um animal bonito, já pensa logo que possa ser uma boa peça sua?
Espedito - Eu lembro do meu pai, que gostava de selar o cavalo pra pegar os bicho na mata, na carreira. E de ferrar com estrio da sela. Você pega boi brabo dentro do mato, faz o fogo, queima o estrio da sela e quando tá bem vermelhinho sabe logo que vai marcar.

OP - O senhor agora tem marca de ferrar gado pra marcar suas peças?
Espedito - Meu pai tinha gado e eu também já possuí. Mas mandei fazer uma peça e é a que tô usando. Porque o pessoal começou a querer imitar minhas peça e dizer que era minha. E fazer as peça com material ruim. E não gosto de trabalhar com material ruim. Pois decidi ferrar minhas peça. Tiver minha marca, o povo compra. Porque se fizesse pelo menos com material melhor que o meu, achava era bom. Porque vender com material mais barato e mais ruim, eu não gosto de trabalhar. Por isso que fiz a marca.

OP - Quem copiava suas peças ?
Espedito - Era o pessoal por aqui mesmo. No Ceará.

OP - Estavam fazendo muita coisa?
Espedito - Estavam, não. Estão. Fazem com material mais barato é só pra ganhar dinheiro. Tem quem faça por aí com material ruim, é pra enricar. Esse não é profissional de verdade. Só é quem faz com carinho e caprichado. Não gosto de copiar nada de ninguém. Tudo é da minha cabeça. Toda peça que faço gosto de fazer diferente.

OP - O (dramaturgo cearense) Oswald Barroso, que o senhor conhece, uma vez disse que o homem do sertão, que lida com o gado, tem relação de amor e ódio com o boi. O senhor concorda?
Espedito - Não concordo com ele porque acho que isso foi uma coisa que Deus já deixou. Ele deixou o couro pra nós se servir, matar e comer a carne. É pra isso. Então a gente não faz aquilo por maldade.


Cláudio Ribeiro
claudioribeiro@opovo.com.br
Demitri Túlio
demitri@opovo.com.br

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